sábado, abril 24, 2010
A Alice de Sissi
Ontem fui ver a peça Alice, com direção e atuação de Sissi Venturin, na Semana em Branco, organizada pela Cia Espaço em Branco – um grupo bem bacana que anda fazendo um monte de espetáculos legais (dá uma olhada no canal deles no youtube).
Em épocas de Alice para todos os lados, fico feliz de ver algo simples, bonito e que não dialoga apenas com as obras de Caroll, mas também com a performance art e com mitos muito fortes como o do Eterno Feminino e o da Tecelã. A Alice de Sissi é fragmentada, contemporânea, tem o coração dilacerado, mas mantém alguns aspectos da criança interior, trazendo leveza à peça.
Em um cenário simples e organizado para um desaniversário, Alice desce do teto por uma corda. O público fica em volta dos objetos, dispostos em círculo, e acaba fortalencendo a ideia do buraco em que Alice cai. (Apenas destaco que a Alice de Sissi desce porque quer, ela tem o controle da corda). Ao tocar ao solo, Alice pega um novelo de lã e começa a tecer. Mas esse tecer não é organizado. Alice gira e ao girar tece a si mesma e se enreda no fio vermelho, do amor, que ela mesmo escolheu.
Não se pode esquecer que nos mitos que envolvem mulheres e a tessitura, o ato de tecer está relacionado com a determinação do destino de si próprio ou da humanidade. Ao enredar-se no fio vermelho, que acompanha a personagem quase até o final, vem a tona a ideia de Alice como a responsável por suas escolhas e lios. Ela só vai se desvenciliar desses fios mais tarde, quando ao público serão oferecidos diversos objetos cortantes para que alguém a liberte. Aqui é o ponto forte do diálogo com o público, que acontece diversas vezes ao longo da peça – Alice precisa de alguém que a liberte. O desejo de liberdade está em si, mas depende do outro, do outro que tem um olhar amoroso.
Esse olhar amoroso é construído durante a peça a partir de seu relacionamento com o público. Entre pequenas interações, por vezes cômicas, por vezes dramáticas, o coração de Alice, feito por morangos, é oferecido ao público em forma de suco adoçado, batido na hora. Após esse dilaceramento provocado pela própria personagem, a afirmação "meu coração é uma bomba", que já havia sido pronunciada algumas vezes, é reiterada até a explosão da bomba. Alice cai e saem de si inúmeros corações de marshmellow, que também são oferecidos ao público. Como não ter um olhar amoroso para Alice?
Daria para continuar escrevendo sobre todos os pequenos atos de Alice e dos outros personagens por ela representados, mas estragaria talvez o deleite com a peça. Apenas gostaria de destacar o personagem do coelho apressado, que provocou o riso da plateia em todas as vezes que apareceu e da Rainha Vermelha, que usa as agulhas das tessituras de Alice para alinhavar o seu próprio pescoço, enquanto anuncia a sentença de morte da personagem. As agulhas aqui já não tecem mais, a trama já foi cortada, Alice já escolheu o seu destino.
No final, a Rainha Vermelha/Alice prende a si um delicado cinto de fita vermelha, de onde saem diversos fios de lã multicoloridos, que estão enrolados em novelos e distribuídos de forma circular, demarcando o espaço quase permeável apresentação/público desde o início da peça. Levando os fios consigo, Alice, que já havia se libertado dos lios e enredos (ou seja, ela ainda acredita no amor, pois se prende aos fios novamente por vontade própria), atravessa o espelho. No caso, a cortina que divide o palco cheio e a plateia vazia. Ela caminha até o final da sala, saindo pela porta de entrada. E, nós ficamos no palco, vendo-a partir e cuidando dos fios que ainda a prendem na realidade, no lado de cá. Será que ela vai voltar? Será que nós atravessaremos o espelho?
A peça volta em cartaz em julho, boa oportunidade para quem perdeu.
(A foto lá de cima, que eu peguei emprestada do blog do grupo, é do Bruno Gularte Barreto.)
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2 comentários:
Eu gostei imenso Camilita! Boas leituras, boas cores. Meu coração também é uma bommmmmba!
adorei texto!! ai ai amorosa Alice!!
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